domingo, outubro 31, 2004

Estamos naquele dia que para os americanos se designa por Halloween. É mais ou menos a versão deles do Carnaval, uma vez que a nossa tradição meio católica, meio pagã do Carnaval é-lhes totalmente desconhecida culturalmente (menos as minorias latinas). A existência de uma altura como esta, em que as regras de convivência social são alteradas temporariamente, remonta às raízes mais profundas da história humana (as Saturninas romanas, as orgias dionisíacas gregas, etc). Tudo isto está muito bem. Na américa é também reflexo de antigas tradições dos indigenas (existe mesmo uma festa parecida no Peru que se chama Festa dos Mortos). Tudo bem. Para os americanos é uma altura de se mascararem, de se encharcarem em doces, de verem filmes de terror, de fazerem aqueles episódios especiais das séries que depois passam cá numa altura que não tem nada a ver, de fazerem merda, etc. Tudo isto está muito bem.
Mas agora porque raio é que certas pessoas insistem em trazer esta tradição para cá? Nós já temos que levar com um Carnaval por ano. E há pessoas, entre as quais eu me incluo, que já o suportam dificilmente. Nós já temos, mal comparado, os Santos Populares. Precisamos mesmo de mais esta pseudo festa? Uma tradição que não é nossa, importada, copiada e na maioria das vezes mal copiada. O apelo do famoso estrangeiro é assim tão forte? Aquilo que temos por esta altura remotamente parecido é o dia dos finados. É isso que eles estão a comemorar? É que não parece.
Talvez seja só o meu mau feitio.

segunda-feira, outubro 25, 2004

Um para a noite

Deito-me com Proust. Continuo a ler os melhores. Outros a quem também dou primazia são aqueles que no seu tempo foram desconsiderados, não lidos, e só descobertos ou editados muito mais tarde. Esta minha preocupação é o exemplo do género de destino, ou determinismo, em que acredito. Um escritor recusado é um escritor aclamado anos mais tarde. Um destino finalmente justo. Mesmo que fora do tempo da vida viva. São os desprezados que têm algo a dizer, algo mais a dizer. Por ora deito-me com Proust com a perspectiva de uma longa noite de prazer. A príncipio foi complicado, não lhe dei tempo, confundi-o. Depois percebi que para dizer quatro ou cinco coisas a valer é preciso um certo distanciamento e apelar à memória de forma progressiva. Por mim estou com ele. Afinal o Tempo Perdido de Proust não anda assim tão longe dos meus dias. Graças a ele. Graças a mim. Para o resto há uma enormidade de possibilidades, o compasso é só o tempo de enfileirar.

A mim, ninguém me cala

O nosso Primeiro que tem 14 secretárias e 8 acessores disse na sua última conversa em familia, ups, comunicação ao país, na RTP1 que lia todos os dias os telegramas das embaixadas. E então para que é que servem as secretárias? E eu sei que os acessores devem ser todos de imagem, mas ele podia contratar alguém que percebe-se alguma coisa de administração pública e lhe segreda-se que os professores do secundário não podem (o estatuto da carreira docente não o permite) nem devem (não têm formação para isso) acessorar os juízes.
Entretanto esse bastião da liberdade de informação e do contraditório que é a política do nosso governo para os media continua imparável. Primeiro um ministro deste governo do PPD/PSD-CDS/PP (já repararam na simetria? acho que vou passar a escrever governo CDS/PPD/PSD, sempre se poupa nos espaços) que acha a, passo a citar: independência, fim de citação, da RTP excessiva. Diz-se que o DN vai sofrer alterações na direcção... o que é que será a seguir: a TSF?
Aguardam-se as cenas dos próximos episódios com a certeza desconfortante que ninguém na sociedade civil que não alguns críticos parecer preocupar-se muito com isso.

domingo, outubro 24, 2004

O pior momento (2)

Para além de poder dizer, sem novidade, que o governo é na generalidade mau, ressalvando um conjunto de ministros com capacidade de mudança, não é significativamente pior que anteriores. O que existe é uma obsessão com um estilo de liderança inconstante e pouco formal, às vezes mal preparada, geradora da maior das perplexidades. As propostas de lei (boas ou más, melhor ou pior veiculadas) não se têm mostrado populistas como alguns previam, muito pelo contrário. A maioria dos artigos de opinião versam sobre a insubstancialidade de Santana Lopes, como se não existissem ministros competentes, como se não houvessem propostas importantes em cima da mesa para serem discutidas. Resulta que a atmosfera há volta do Governo encontra-se inquinada por dois grandes motivos. O primeiro encontra-se na forma tradicional de oposição política e que nestes três meses se degradou de forma evidente procurando potenciar o descontentamento pela base. O ataque político transformou-se num mero eco do ruído mal informado da opinião pública. É a impressão que conta. Temos exemplos recentes. O que importava saber a respeito do encerramento do túnel do rossio era se existia ou não ligação com as obras do túnel do Marquês. O intuito é óbvio. As declarações de Morais Sarmento (que não se deu ao trabalho de avaliar o sentido de oportunidade) sobre o formato da RTP foram rapidamente puxadas para a questão da limitação da liberdade de imprensa e muitos fantasmas foram desde logo soprados. A intenção é clara. Nestes termos não há debate possível. E um governo com uma liderança titubeante rapidamente se enreda nas suas próprias hesitações. O governo não é a causa de todos os males. A oposição séria não existe. Repare-se neste PS de Sócrates. O próprio pouco se mexe e o questionamento feito pelos seus pares, efectuado sempre de forma grosseira, apenas procura arrastar o governo até ao final da legislatura fixando-o num ponto em que os eleitores rapidamente o crucifiquem aquando da chamada às urnas. É visível que neste momento eleições seria um grande incómodo para Sócrates. Mas não quero querer que o deserto de ideias que neste momento o PS transparece se verifique quando vencer as próximas legislativas. A segunda razão relaciona-se com a não-aceitação de um novo modo de estar na política, que corta com os anteriores, e que se condensa na utilização de novas formas de comunicação que estão neste momento a ser exploradas de uma forma quase a gosto e também elas sem rumo certo. A repulsa que origina nos opinion-makers é o que os distrai do essencial, que continua a ser mesmo: projectos para o País. Depois o terreno desconhecido, movediço, chama à memória desgraças do passado. Por isso é que nunca tanto se temeu como agora a diminuição de liberdade ou de direitos, mesmo que nada disso tenha a ver com o futuro, pelo menos de uma forma local e estrutural. O perigo de não gostar de um estilo ameaça sempre tornar-se numa questão pessoal onde a emoção fala mais alto que a razão. O que fica é o debate nunca ter sido tão péssimo como nos tempos que correm, e desta vez a culpa está igualmente distribuída; não pode ser de um homem só. Puxar o futuro do país para primeiro plano não nos fixando numa mudança que não se configura como meramente passageira. Aceitar a mudança. É que a seguir vem Sócrates.

quinta-feira, outubro 21, 2004

O pior momento

As imagens que hoje vimos, e que há muito tempo não víamos, de alguns estudantes de Coimbra em confronto directo com a polícia, que a príncipio tentou afastá-los para que não interrompessem uma reunião do Senado da U.C., acabando por existir lançamento de gás mostarda como forma de dispersar os estudantes, é a materialização evidente do estado de espírito que se foi instalando em relação a este governo, principalmente em relação à figura do Primeiro Ministro Santana Lopes, uma vez que os restantes ministros, alguns de valor já demonstrado, são esquecidos centrando-se, como se quer, o foco em todo e qualquer acto feliz ou infeliz de Santana Lopes. Passa-se que existe uma histeria geral, insegurança difusa que tende para a reacção impensada, exagero absoluto, desonestidade intelectual, deturpação. A frequência com que se omitem factos dando-se relevância a outros consoante a conveniência disparou. A predisposição negativa que se criou desde o príncipio da tomada de posse de Santana Lopes tem sido explorada até à exaustão pela oposição, que deixou de ser apenas na forma continuada dos partidos de força política oposta com assento parlamentar, mas uma larga maioria de comentadores que escrevem e falam como se a desresponsabilização fosse afinal, desde sempre, a característica mais querida de cada um. Existe um conjunto de sentimentos negativos, desde o desprezo ao rancor, que perpassam em muito do que é dito e dirigido a Santana Lopes. A convocação sistemática de fantasmas do 24 de Abril; da privação de direitos adquiridos é um sintoma. Feito neste tipo de moldes o debate não é minimamente sério, e ao contrário do que se possa pensar existe excesso de debate hoje em dia. Desemboca na confusão. De um lado o que existe é uma falta de talento flagrante. Do outro um exorbitar da história para proveito próprio, ou simplesmente desfasamento, ou ainda ausência de rumo. Voltando aos estudantes de Coimbra, eles provocaram e desafiaram de forma gratuita a policía sem nenhum objectivo que não fosse a mera arruaça. O que é que isso tem a ver com duas ou três ideias sobre a questão das propinas, ou mais importante, sobre o Sistema Educativo? Nada. Antes, tem a ver com isto: logo que a polícia esboçou uma atitude mais firme um estudante agarrou rapidamente num megafone que tinha preparado por perto e denunciou glorioso, quiçá triunfante, a vitória da tarde: Fascistas!!! Assim se comportam também oposição e comentadores, empurram o governo para a arruaça. É muito fácil atacar o governo. Sócrates com toda esta turba a ladear, tem a vida bastante facilitada como nunca teve um líder da oposição, mas talvez venha involutariamente a pagar caro quando vencer as próximas eleições - e vai vencê-las -, porque o seu estilo está mais próximo de Santana do que de Cavaco Silva, Mário Soares ou - e agora é a minha vez de ser gratuito - de Alváro Cunhal que Pacheco Pereira tanto aprecia. No meio de tudo isto a voz abafada do suspeito Jorge Sampaio quase não se ouviu em entrevista à Antena 1, conforme cito via Bloguitica:

"[O actual Governo] não está em diferentes condições do que outros no que respeita à sua apreciação (...) não se padece de nenhuma predisposição para ser dissolvido, nem mais nem menos do que qualquer outro com que trabalhei."


Vai ser penoso de assistir a todo este circo se assim continuar até ao final da legislatura. Um governo a arrastar-se, continuamente assombrado, na medida em que não querem ter outra função, por inúmeras carpideiras.

P.S. Outras grandes faltas de vergonha vão acompanhando o clima de histeria que se foi instalando como aproveitável, reveste-se de marcas especialmente arrepiantes quando se juntam dependência e irracionalidade, como no futebol: a conferência de imprensa de Luís Filipe Vieira depois do Benfica-Porto foi de um mau gosto atroz.

segunda-feira, outubro 18, 2004

Diários da América do Sul

Este membro do blog foi ver os "Diários de motocicleta" (o título foi incorrectamente traduzido para chamar mais público). Gostei muito e recomendo. O Gael é uma referência e uma promessa. Um amigo meu de direita adorou, o outro detestou. Experimentem, nem que seja pela fotografia e depois digam qualquer coisa.

sábado, outubro 16, 2004

A velha tradição

Se há coisa estúpida no meio académico lisboeta, essa coisa é a porcaria das praxes. Digo Lisboa porque aqui não se pode usar a justificação batida da tradição académica. Quando a minha mãe andava na universidade, não havia praxes. Ora a tradição é suposto ser uma coisa que se baseia no facto de ser uma prática imemorial. Não o é. A universidade de Lisboa não tinha esta tradição até para aí os anos oitenta. Grande tradição. Se calhar o disco sound também é musica clássica... E então as privadas, hã? Isso é que é tradição... Nunca integrou ninguém. Serve só para alimentar o ego de alguns. É como andar mascarado fora do carnaval, é como usar "traje académico". Não percebo a piada, se calhar é um defeito meu. Se calhar fui mal praxado, senão tinha-me integrado. Mas agora também é tarde de mais.

sexta-feira, outubro 15, 2004

Que preceito, mesmo?

O meu corpo, excepto interferências pontuais, responde a uma interioridade a preceito. Tento libertá-lo mas ele diz-se reticente a materializar movimento que consiga comunicar alguma coisa que não seja concepções vazias ou maneirismos. A melhor forma de tentar obter resultados é apanhá-lo desprevenido. Tento sempre apanhá-lo desprevenido. Ceder ao medo na primeira ocasião em que o sinto superior à minha vontade tentando inferiorizar-me. Percebo-o, de certo ponto de vista, mas ignoro-o. Conseguirei dizer alguma coisa sem ser por palavras imóveis?
Conseguirei completar as palavras com alguma substância? Não quero nunca mais debitar. Escusam de carregar no botão, o automatismo paralisou.
(...) Tal como não é a outro homem inteligente que um homem inteligente terá medo de parecer estúpido, não é por um grande senhor, mas por um rústico, que um homem elegante receará ver menosprezada a sua elegância. Três quartos dos ditos de espírito e dos embustes de vaidade prodigalizados desde que o mundo existe por pessoas que com eles sistematicamente se diminuíam foram dirigidos a inferiores. E Swann, que era simples e negligente com uma duquesa, tremia de ser desprezado e estudava as suas atitudes quando estava diante de uma criada de quarto.
Não era como tantas pessoas que, ou por preguiça ou por uma consciência resignada da obrigação criada pela estatura social de permanecerem ligadas a um certo lado da vida, se abstêm dos prazeres que a realidade lhes oferece para além da posição mundana onde vivem acantonados até à morte, limitando-se a acabar por chamar prazeres, à falta de melhor, mal conseguiram habituar-se a eles, aos divertimentos medíocres ou aos suportáveis tédios que essa posição contém. Quanto a Swann, não procurava achar bonitas as mulheres com quem passava o tempo, mas passar o tempo com as mulheres que previamente achara bonitas (...)

[Em Busca Do Tempo Perdido Vol. I: Do Lado de Swann, Marcel Proust]

segunda-feira, outubro 11, 2004

Dentro do Mundo

É isto que quero dizer. A errância pode servir vários interesses ao mesmo tempo. Desde logo os do Próprio com muitos princípios e meios. Esqueçamos os epílogos para que não se lhes dê demasiado, respeitando assim o gosto que o fim tem, em ser parco. Mas não se houve contar que essa forma de trilhar com pouco rumo, tenha alguma vez resultado em largos proveitos indefinidos. Não se devia dar muita importância ao que se houve contar e no entanto é exactamente nessa cacofonia que o ouvido se gosta de apurar. E em proveito da verdade os sentidos andando um pouco soltos justificam-se melhor. Que para grandes males, grandes remédios. Eduquem-se os sentidos ou aprenda-se a filtrar. Temos que a errância é um contraponto à melancolia e a estados análogos mais ou menos gravosos. A desgraça está em ninguém o saber. Escusava-se muito lixo que olhar a vida de lado origina. Posso aqui salientar a tentativa assumida de em cada frase tomar as rédeas, não quero de modo nenhum acabar a escrever sobre a excessiva concentração de energia porque embora fosse bonito de pintar seria penoso de ver. Se me relaxasse, palavra absurda, conceito feio, também haveria a possibilidade de me fugir o dedo para a vagabundagem e sobre ela discorrer de modo tão apaixonado que se tornaria antipático para as comuns simpatias alheias. Finalmente: eis que se reenvia a errância para dias melhores. Ela que tanto tempo andou a embalar a auto-estima, a perfumar o Eu com odores inolvidáveis, ela que insinuou a magnificência, ela que puta de vida, varreu a poeira para debaixo do tapete e ocultou-a até que alguém numa intersecção tardia abriu a janela sacudiu o tapete e revelou de que inutilidade falávamos quando referiamos poeira, afinal indigna de atenção porque imemorial na culpa e na origem. A errância oferece-nos um diamante em bruto que só é lapidado quando dela regressamos. Dela, que só no género feminino a podemos enquadrar. Também ela seduz, alicia, faz abandonar o corpo e o espírito. Absorve-o e entrega-o. Que bonito molde resulta de tão aturado serviço. Que bonito molde, demasiado perfeito. Intentar contra a auto-estima, provocar o amor próprio, convocar um machado e suspendê-lo por cima da competência acumulada do homem. Testar. Percorrer firme sem espaço para respostas ambigúas. Saber se sim, se não.

domingo, outubro 10, 2004

O lápis azul

Pois é, vivemos num país de opereta onde o governo não tem legitimidade democrática fundada nas urnas e silencia os opositores... E a UE está a exigir requisitos democraticos à Turquia... Como é que será lá a liberdade de expressão? Gosto daqueles que em nome do direito ao contraditório defendem que se cale uma voz crítica ao governo. Incoerência? Não!! Eu aliás que para haver contraditório o Professor devia estar acompanhado de alguém do PS. Não iam certamente querer que o contraditório fosse feito entre dois comentadores do PSD? Ou por algum jornalista que não conhece os dossiers e que talvez até confunda a Coreia do Norte com a do Sul (desculpem, é "private", mas irresistível)? E quanto a comentadores dos outros partidos com representação na AR? E quanto aos outros partidos? E quando ele dizia mal dos governos PS, aí ainda não era preciso contraditório? Mais incoerência? Não!! Portanto ele pode "destilar veneno" (citação directa) mas só em relação às pessoas certas.
O que francamente me aflige é o facto de quase ninguém se afligir com isto. O governo silenciou uma das suas maiores vozes criticas através de pressões económicas e nada... nem um suspiro, nem do Ministério Público, o defensor da legalidade democrática, nem do Provedor de Justiça, nem do nosso auto nomeado "sempre vigilante" PR. Até pode ser que não tenham sido pressões económicas directas mas a ideia de que um grupo de accionistas acha que é preciso mandar amaciar um comentador de uma das suas estações por medo de os seus negócios começarem a correr mal por sua própria recreação é arrepiante. E pessoas até acham que foi o Professor que fez de propósito, que se está a auto-promover... Mesmo que assim seja, o governo então agiu mal por lhe dar a oportunidade de o fazer. O governo mais uma vez revelou a sua incompetência.
O tecido da democracia é muito fino, rompe-se com muita facilidade e não é fácil de concertar.

quinta-feira, outubro 07, 2004

Está viva.

Era menina de uma cinturinha cingida por desenganada saia rodada.
Atravessa a rapariga, que ao pisar a proximidade do respirador 1x1 do metro sugere:
Queres-me ver fazer como a Marilyn Monroe?


[Pôr-do-sol, baixa pombalina, feriado.
Não passa nada, não mora ninguém.]

O kamikaze Marcelo

Não é de estranhar que o atolado Rui Gomes da Silva, que como se sabe desde há muito mantém uma lealdade canina a Santana Lopes e é apenas por isso que tem o seu improvável lugarzito no elenco, tenha proferido as declarações nada democáticas de segunda-feira em defesa do dono. O argumento estapafúrdio do "príncipio do contraditório" não tem encaixe como não tem a febril acusação de "censura". O apelo feito à AACS só tem cabimento porque esta na realidade não existe, não procura ocupar-se de situações bem originais que se vão passando com certa frequência por cá. A ausência de uma linha de continuidade deixa um vazio que permite clamar pela AACS quando aquela entidade não faz falta. A AACS não é levada a sério e tem uma visibiliadade nula, apenas por isso se pode brincar desta forma com as suas atribuições e fazer-lhe apelos não democráticos. Não é certo que a saída de Marcelo Rebelo de Sousa da TVI tenha sido originada por qualquer tipo de pressão. Nem a TVI (através da Media Capital) nem o próprio MRS são pressionáveis neste tipo de situações. Deixo portanto a imaginação das obscuras ligações perigosas para o farol da esquerda criativa. MRS, homem inteligente que gosta de compôr cenários como forma de prognosticar a vida pública, sabia muito bem que a sua saída da TVI nestes moldes se transformaria num facto político (que até abriu ontem os três telejornais) de maior estrago e prejuízo directo para o governo que uma singela resposta inflamada no próximo domingo. Confirmou-se. O próprio Santana Lopes obrigou-se a falar ontem acerca da questão apesar de ser avesso a juntar a cara a situações potencialmente negativas para o governo. Marcelo calou-se porque quis. O joguete Rui Gomes da Silva empurrou Marcelo mas este levou-o na queda e com ele Santana Lopes.

terça-feira, outubro 05, 2004

Os novos líderes: talvez Sócrates.

A propósito da vitória de José Sócrates como secretário geral do PS têem existido algumas opiniões que sentenciam o regresso do Guterrismo, ou pelo menos uma nova era com velhos costumes. Apesar dos apoiantes de primeira linha de Sócrates serem na generalidade os mesmos do guterrismo, o modo e o caractér do líder agora presente situa-se a grande distância da vincada inacção que constituía o fundo da gestão guterrista. Não é de prever que volte a máscara da constante busca do diálogo e do consenso, com muito marketing e auréola cristã, para no fim resultar um passo à frente e outro atrás e tudo ficar inalterado, sem mudança, procurando minimizar a perca de simpatias. A ausência de decisão, ou mesmo a incapacidade de decidir, não caracteriza Sócrates que dentre o leque ministerial frouxo que Guterres escolheu como espelho, sobressaía como alguém com desejo de mudança, que queria fazer, que identificava problemas e tentava soluções, originava rupturas e criava conflitos. E isto, note-se, na pasta do Ambiente que tradicionalmente (e quase sempre por duvidosas razões) não traz dores de cabeça de maior. Curioso é verificar que falando de Guterrismo aponta-se para uma certa forma de governar. Ora Sócrates no imediato vai ser líder da oposição. Mas é natural que ninguém tenha grandes dúvidas, mesmo de forma não consciente e não o querendo aceitar, que Sócrates saia vencedor das próximas legislativas...

Carpir a ausência dos líderes políticos de antigamente ou lamentar a inexistência de um conjunto de valores, ou características carismáticas, tidas como essenciais no exercício da actividade política desvalorizando e relegando os actuais líderes para polidos vendedores de sabonetes é uma análise estafada e que por si só não favorece a democracia e acaba por não alertar o cidadão para nada de relevante. Isto porque se esgota numa desvalorização da actividade política em vez de extravasar esses limites e perguntar à sociedade que politicos gera e como os gera. É da ordem das coisas que as transformações sociais se façam sentir em todos os campos da vida pública e privada. A crescente importância da imagem é um facto que entra de forma determinante também no ciclo político actual como gerador de sinergias. É provável que o velho e esforçado carisma do passado tenha sido substituído pela imagem. Saber se Sócrates lê o teleponto enquanto discursa ou acusar Santana Lopes de ter uma imagem como se esse fosse o seu maior pecado resulta de uma intelectualidade ingénua, talvez cinzenta, que precisa de se actualizar. Tendo a sorte de se ter a tal imagem de a saber projectar e mesmo instrumentalizar para daí tirar benefícios é um facto aceitável com que é necessário saber conviver. A fixação na imagem por deslumbramento (o que acontece ao eleitor comum) não é pior que a fixação na imagem por preconceito (o que acontece a alguns comentadores ). Claro que o problema não deixa de ser o de sempre. O desenvolvimento de um país não passa pela afirmação de uma imagem e portanto é necessário em primeiro lugar a prioridade fulcral de se ter ideias, de as planear e de as levar a cabo. Mas o constante sublinhado de que fulano tem uma imagem (quase dizendo: fica bem no ecrã, logo é volátil) em vez de se denunciar da forma que se pense mais apoiada de que primeiro que tudo o que não existe, o que falha, são as ideias, construíndo a declaração pela negativa, é o modo mais acertado de se recentrar a questão no essencial.

segunda-feira, outubro 04, 2004

Há hoje em dia uma corrente de opinião (modas...) entre a malta jovem mais ou menos alternativa que torce o nariz a tomar medicamentos da, por eles denominada, medicina “convencional”. Eu também não morro de amores por comprimidos, mas quando me dói a cabeça não desprezo uma boa aspirina (obrigado Sr. Bayer, pelo ácido acetilsalicílico). Um desses jovens diria: “Eu não gosto muito de tomar comprimidos”. Mas quer dizer, eu não te estou a oferecer ecstasy, é uma aspirina... A minha opinião sincera é: das duas uma, ou essa gente toma os seus medicamentos como todos nós e depois tem esses discursos de falso moralista (“ que bem que prega Frei Tomás...”), ou nunca teve uma dor de cabeça ou de dentes a sério. É que eu já.
E normalmente esses jovens amantes da medicina, por eles designada como “natural”. Portanto o raciocínio parece ser: medicamentos autorizados e controlados pelo Infarmed feitos em laboratórios autorizados e em condições controladas: não. Medicamentos, ou melhor “medicamentos”, feitos a partir de folhas de chá da Índia, bagas da Tailândia, soja, de preferência chinesa (“Ya man, a China...”) ou bosta de elefante enrolada pelo escaravelho dos desertos africanos. Ou tratamentos com agulhas. Isto, sem qualquer controlo pelas entidades oficiais: sim.
Claro, isto parece totalmente lógico. E dizem-me isto enquanto fumam um charro. Fumam charros e dizem-me que não tomam medicamentos porque não gostam de ingerir “substâncias artificiais”. Claro, o haxixe marroquino deve ser 100% natural.
Tudo isto faz todo o sentido...

domingo, outubro 03, 2004

Filme

Este membro do Blog foi ver o "Bom dia, noite" (foi mal traduzido, não se percebe porque é que na versão portuguesa puseram um ponto de exclamação no fim, será que "bom dia" tem de ser seguido por um ponto de exclamação?). Gostei, recomendo. É talvez mais indicado para aqueles que como eu não se importem de um filme mais parado e cheio de referências históricas (sim eu gosto muito de história). De qualquer forma vale também pela denúncia dos fanatismos e estremismos. O terrorismo nunca é uma opção. Mas o comportamento dos políticos e religiosos também não parece ter sido o melhor.

sexta-feira, outubro 01, 2004

Lisboetas, no Indie

Sérgio Trefaut (brasileiro) fez um filme sobre aqueles que tentam a sorte da vida em Portugal, que imigram para Lisboa. Chamou-lhe Lisboetas. Como filme trata-se de um falhanço porque não satisfaz alguns requisitos essenciais para motivar o espectador que busca, embora se possa aceitar que a índole do exercício esteja mais virada para a ideia de documentário. Mas como documentário o tombo ainda é maior visto que não encerra nenhum valor documental, testemunhal, não se entrevê um olhar clínico, uma abordagem sociológica aproximada e mesmo por leve que seja. Se baixarmos a fasquia não melhoramos a análise, o filme (vou continuar a chamar-lhe assim por uma questão de economia) não consegue sequer despertar o espectador para uma realidade que enquanto cidadão lhe pode passar ao lado. Ficamos a saber que um brasileiro acha que arranjar trabalho em Portugal é fácil com ou sem contrato, ficamos a saber através de uma "lisboeta" de leste que o Sistema Educativo português é pouco exigente mas que em compensação as praias são muito boas. E ficamos a saber mais uns poucos lugares-comuns que nos são dados ao conhecimento através de frugais conversas ao telefone que os imigrantes fazem para familiares. As conversas são tão desgarradas (como o conjunto das imagens) que fica-se na dúvida de quem será o verdadeiro autor, se quem fala, se o realizador com guião prévio. A imigração é um fenómeno complexo que permite diversas formas de abordagem, desde a partida dos países de origem, as máfias, a legalização, o acolhimento, a inclusão/exclusão, as condições sócio-económicas, o desenraízamento das segundas e terceiras gerações, a habitação, a forma como são vistas as diferentes comunidades migrantes e o tipo de interacção que estabelecem, etc. A forma ligeira como o filme se desenvolve, sem rumo, roçando o folclore, suscita --suscitou-- por vezes o riso na plateia que serve de factor conducente a uma atitude ainda mais distanciada ou quanto muito paternalista. Depois o filme centra-se sobretudo nos imigrantes dos países de leste, alguns brasileiros, e ignora a população de origem africana que até é a grande maioria. Isto espelha uma certa tendência que se tem vindo a instalar. Será que existem imigrantes de primeira e de segunda? Mais uma vez o retrato parcelar não abona em favor do filme e torna-o pernicioso. Existem ainda assim uma ou duas cenas interessantes: os "almeidas ucranianos" que de madrugada cantam enquanto lavam a calçada do bem lisboeta elevador da Glória e a cena (de tipo câmara oculta) que filma capatazes em plena acção de "recrutamento" de mão-de-obra barata no Campo Grande. O filme termina com uma cena de profundo mau gosto: um parto. Nunca vi um parto filmado no cinema. Mas quem quiser encetar essa tarefa terá que o fazer com cautelas redobradas e atentar na pertinência da cena, e no modo como é apresentada, sob pena de rapidamente se cair no ridiculo e na banalização de um momento de grande valor humano. Filmado assim de chofre soa a um pretensiosismo ruidoso e bem desnecessário no conjunto de um filme medíocre. Sérgio Trefaut apostou alto, mas perdeu.