sábado, março 27, 2004

Belgais.

Para meu contentamento parece que na blogoesfera se deram conta da existencia de Belgais. O projecto descentralizado e pioneiro de Maria Joao Pires numa quinta cada vez menos perdida da Beira Baixa, levou a que numa entrevista ao El Pais, a pianista mostrasse a sua insatisfaçao quanto 'a falta de suporte do estado portugues a um projecto com impacto local mas de dimensao internacional. Muito a proposito o Aviz escreveu o seguinte que subscrevo por completo:

A questão básica, se me permitem -- amigos de esquerda e de direita --, é que Belgais não é uma peça de teatro no Bairro Alto nem um grupo «de vanguarda» que choraminga porque o Estado não cedeu à sua chantagem habitual para produzir mais um fait divers. Belgais é uma escola, um centro de investigação musical, um auditório para que músicos realmente importantes se encontrem, trabalhem e produzam música, que é um bem inestimável num país de merda que tem tagarelas à altura mas que é ignorante em matéria musical. Não se trata de «um espaço» inútil: ali, aprende-se música, conservam-se partituras, e ensina-se. Num país que ignora brutalmente as artes sérias e as ciências importantes, eu defendo que se deve apoiar Belgais. Porque cada caso é um caso, independentemente do que se possa pensar sobre a política geral de atribuição de subsídios à cultura, nível em que Belgais se salienta pela atenção que dá à formação. Maria João Pires, de facto, não precisa de Belgais nem da burocracia ou das promessas portuguesas, pode viver onde lhe apetece, mas achou que podia fixar-se em Castelo Branco e que poderia investir parte do que é seu numa obra daquela importância.
O protesto de Maria João Pires não é contra o Estado nem contra o governo apenas. É contra o país -- e isso compreende-se muito bem. O país do Euro 2004 e dos «desfiles de moda» subsidiados pelo Estado e pelas câmaras municipais, o das empresas que não cumprem as suas promessas, o dos ricos que ignoram a existência de uma responsabilidade social do dinheiro.
Eu, pessoalmente, estou-me nas tintas para as posições políticas de Maria João Pires e para a sua presença nas manifestações em que entendeu estar presente (e eu não estive, nem estarei), ou para essa contabilização de ressentimentos, que neste caso vêm da direita -- e que no caso de Vasco Graça Moura ou de Fernando Gil vieram da esquerda. Maria João Pires é, se acreditarmos que as pessoas têm uma nacionalidade à nascença, um nome português de que nos devemos orgulhar: pelo seu talento, pelo seu piano, e por Belgais, que pode ser visitado e vivido. Milhares (repito: milhares) de idiotas e de pseudo-talentos viveram, na cultura, à conta do Estado. Ou porque querem escrever e «ter ideias» com o chapéu protector do Estado ou defender qualquer outra urgência liminar em nome do seu génio ainda a provar. O génio de Maria João Pires não precisa de ser provado: está aí. Os fundos que pediu, que negociou, que viu serem atribuídos em contrato a Belgais, são uma «parceria» para um trabalho notável. Não existem para ela gravar Schumann, Chopin ou Mozart para um país surdo que limpou com benzina o nome de Vianna da Mota de um avião da TAP, para lá colocar o de um futebolista -- isso, ela grava onde quiser. Esse país, em versão ligeira, mas com todas as letras, é uma merda.


Depois o Ideias Soltas tambem presta alguns esclarecimentos importantes:

2 - Maria João Pires não pede subsídios para a sua actividade como concertista nem para gravações, bem pelo contrário, todo o dinheiro que consegue com essa sua actividade coloca-o ao serviço do projecto Belgais. Este projecto de instrução/formação e divulgação ímpar é subsidiado a vários títulos, a saber:
2.1 - Produção de espectáculos e captação de novos públicos consubstanciados em concertos para as escolas na região de Castelo Branco, pelo Ministério da Cultura através do extinto IPAE e actual IPA (donde me parece provir estas notícias de sobre-financiamento) e passo a transcrever a missão definida para este contexto:

Concertos para as Escolas
Além da temporada regular de concertos de Belgais, que este ano inclui concertos mensais dedicados a vários países ou regiões, o Centro para o Estudo das Artes de Belgais criou recentemente uma nova modalidade de concertos, especialmente dedicados a escolas que queiram visitar o centro.
Nestes concertos serão apresentadas diversas obras do repertório clássico que, pelas suas características, são de uma mais directa e evidente assimilação por parte de um público jovem, e por outro lado trata-se de repertório que suscita estimulantes referências a universos extra-musicais como a literatura, as artes plásticas, etc.

Estes concertos serão comentados e haverá sempre espaço para um diálogo aprofundado entre o público e os músicos intervenientes sobre todos os aspectos relacionados com o fenómeno musical, desde os instrumentos, até à rotina de estudo ou ao nervoso de estar num palco.
Trata-se de uma forma estimulante de fazer chegar a jovens estudantes o mundo dos grandes mestres da música, criando pontes e relações com universos culturais que lhes são familiares, evitando assim algum tédio que, por vezes, formas de apresentação pouco imaginativas, ou escolhas de repertório pouco adequadas, podem provocar.


2.2 - Depois do Ministério da Educação determinar o encerramento de várias escolas do ensino básico dos arredores rurais de castelo Branco, Belgais propos-se acolher os alunos dessas escolas que seriam deslocados, apresentando um projecto educativo para o efeito, onde a formação e sensibilização para a arte teria uma presença idêntica às restantes áreas do saber e sentir, tendo o Ministério da Educação celebrado o primeiro Contrato-Programa com uma entidade privada para assegurar o ensino básico do qual se tinha demitido, com o prazo de 50 anos. Chama-se a este projecto "A Escola da Mata" sendo o atraso do cumprimento do financiamento deste projecto ímpar a que Maria João Pires se referiu. Passo a transcrever a missão que Belgais assumiu para si própria neste projecto:

Escola da Mata
Os projectos com crianças assumem-se como prioritários nos temas e objectivos do Centro para o Estudo das Artes de Belgais. Neste contexto, nasceu o projecto de uma Escola Primária Bilingue, baseada no estudo das Artes. Uma escola que pretende, ao longo dos anos, edificar um projecto global de intervenção cultural e social dedicado não só à população da Beira Baixa, mas a todos os que desejem fazer parte deste projecto inovador, que desincentiva a desertificação e que repõe a confiança das populações na sua região através das artes eruditas e tradicionais.

O projecto educativo da Escola da Mata apoia-se em três pilares fundamentais: a presença das artes na educação básica, o bilinguismo e uma consciência activa dos valores da comunidade em que a escola se insere. Pretende-se, desta forma, acrescentar a uma abordagem séria e criativa dos programas urriculares, um ensino que possa desenvolver nas crianças valores consolidados de integridade e auto-estima.
Assim, todas as áreas curriculares da escola devem, de algum modo, reflector os três pilares anteriormente referidos nos seus conteúdos programáticos

Há quem diga que estas crianças são beneficiadas em relação às restantes. Têm toda a razão. Belgais providencia a suas expensas, o transporte, a alimentação e dormida se necessário for aos seus alunos. Nisso têm toda a razão!


Com o Epicurtas, mal informado decerto, começa a confusao porque centra a questao em saber o seguinte:

(...) porque há-de o estado, por via dos impostos, admitir que haja criancinhas, que sejam mais bem tratadas que outras?

O Centro de Artes de Belgais extravassa em muito os limites de um 'mero' projecto educativo com 'criancinhas'. Ainda que se o fosse 'apenas', dada a pobreza de iniciativas desta natureza ja seria de aplaudir. Se existe alguem que procura promover uma educaçao cultural de excelencia junto de uma escola de primeiro ciclo, devemos apoiar e ficar satisfeitos ou afirmar que as crianças da escola da Mata nao sao mais que outras menos afortunadas e votadas 'a triste sorte de uma educaçao mediocre?

Ainda o Tempestade Cerebral, talvez enviesado pelas elevadas regras do marketing, conclui uma ausencia de 'auto-promoçao' por parte de Maria Joao Pires em relaçao a Belgais. Maria Joao Pires ainda nao se apercebeu das leis do mercado, trata-se tao somente de uma questao de publicidade no intervalo da telenovela...

Finalmente termino com o blog-com-o-nome-mais-simpatico-da-blogosfera:

Aprender a tocar piano ou talvez mesmo a pensar é algo assustador para muita gente. Se soubessem exactamente o que significa ter pensamento próprio tudo seria diferente. Todos os medos se desvaneceriam.

Ainda que um politico possa ser sobretudo um homem de direita ou de esquerda, um artista e' sobretudo alguem que cria cultura.
E isto vale para Maria Joao Pires, como vale para Jose Saramago (a proposito do seu ultimo livro.)