Como é bom citar longamente Clara Ferreira Alves
A incrível leveza do ser
Lisboa não é uma cidade cosmopolita (e também não o é no sentido cultural, note-se) porque os seus habitantes são todos iguais ou quase todos iguais. A manta de retalhos tem poucas cores e menos variedade: além dos africanos, alguns brasileiros e imigrantes do antigo império soviético, os quais, curiosamente, ficam logo iguais aos portugueses no modo de vestir-se e comportar-se, visto que a pressão social de uma sociedade fechada como a nossa não tolera a excentricidade nem a diferença. (…) Japoneses de cabelo roxo, góticos alemães, senhoras distintas de cabelo louro cinza, cavalheiros de chapéu de chuva e gabardina em Agosto, caribenhos de pele de bronze e cabelo rasta, nórdicos desmaiados com borbulhas, nórdicas de cartaz turístico, americanos desastrados, loiros portadores de sandálias perenes (com peúga), argentinos de tez malte e olho traiçoeiro, brasileiros de amarelo e verde, chineses incompreensíveis, ingleses irrepreensíveis, raparigas de saia curta, rapazes esguedelhados, crianças d olhos pretos, crianças, de olhos azuis, crianças de todas as cores e feitios, e adultos de todos os feitios e cores, foi esta a variedade que vi em Londres e que vejo ainda em qualquer grande capital, deslizando pelos lugares como modelos numa passadeira utópica onde coubessem todos os formatos da humanidade. Em Portugal, e em Lisboa, existe a tolerância dos formatos, mas não a variedade nem a tolerância dos comportamentos. (…) A beleza também nos irrita, e não é pouco. A beleza é um valor espiritual, quer queiramos quer não, mas, ninguém está disposto a admitir tal verdade, porque beleza tem de ser aliada da estupidez, da ambição, da tontice e, afinal de contas, um sinal de menoridade, um sinal de aleijados e, sobretudo, aleijadas. Uma mulher bonita incomoda muita gente, como os elefantes, o que até é compreensível, porque, de um modo geral, se excluirmos as novas gerações de adolescentes bem nutridos, os portugueses, e as portuguesas, não se caracterizam pela grande beleza. Deus fez os italianos e depois guardou o molde bem guardado. A beleza e a inteligência são o supino irritante da pele mesquinha, tenhamos cuidado. Poucas cidades no mundo são tão obcecadas com o sexo como Berlim. Vêem-se vestidos decotados, saltos de dominatrix, decotes arrevesados e trapos com pedaços de metal incorporados. Vêem-se lantejoulas e missangas, tecidos transparentes e joalharia espampanante, saltos-agulha e botas de biqueira, vernizes e indiscrição a rodos. (…) Foi em Berlim que a semente da democracia e dos princípios libertadores dos americanos gerou a sua planta mais vigorosa, uma sociedade culta e tolerante, educada nos valores da universalidade e do cosmopolitismo, sabendo que a negação do Outro gera o gulag e o campo de concentração, o extermínio e a separação, o Muro e a vergonha histórica. Um dia, todas as cidades serão feitas desta maneira. Um dia, Lisboa sairá da sua soturnidade melancólica e descobrirá que existe uma vida para além do nosso preconceito.
Pluma Caprichosa, in Expresso.
Lisboa não é uma cidade cosmopolita (e também não o é no sentido cultural, note-se) porque os seus habitantes são todos iguais ou quase todos iguais. A manta de retalhos tem poucas cores e menos variedade: além dos africanos, alguns brasileiros e imigrantes do antigo império soviético, os quais, curiosamente, ficam logo iguais aos portugueses no modo de vestir-se e comportar-se, visto que a pressão social de uma sociedade fechada como a nossa não tolera a excentricidade nem a diferença. (…) Japoneses de cabelo roxo, góticos alemães, senhoras distintas de cabelo louro cinza, cavalheiros de chapéu de chuva e gabardina em Agosto, caribenhos de pele de bronze e cabelo rasta, nórdicos desmaiados com borbulhas, nórdicas de cartaz turístico, americanos desastrados, loiros portadores de sandálias perenes (com peúga), argentinos de tez malte e olho traiçoeiro, brasileiros de amarelo e verde, chineses incompreensíveis, ingleses irrepreensíveis, raparigas de saia curta, rapazes esguedelhados, crianças d olhos pretos, crianças, de olhos azuis, crianças de todas as cores e feitios, e adultos de todos os feitios e cores, foi esta a variedade que vi em Londres e que vejo ainda em qualquer grande capital, deslizando pelos lugares como modelos numa passadeira utópica onde coubessem todos os formatos da humanidade. Em Portugal, e em Lisboa, existe a tolerância dos formatos, mas não a variedade nem a tolerância dos comportamentos. (…) A beleza também nos irrita, e não é pouco. A beleza é um valor espiritual, quer queiramos quer não, mas, ninguém está disposto a admitir tal verdade, porque beleza tem de ser aliada da estupidez, da ambição, da tontice e, afinal de contas, um sinal de menoridade, um sinal de aleijados e, sobretudo, aleijadas. Uma mulher bonita incomoda muita gente, como os elefantes, o que até é compreensível, porque, de um modo geral, se excluirmos as novas gerações de adolescentes bem nutridos, os portugueses, e as portuguesas, não se caracterizam pela grande beleza. Deus fez os italianos e depois guardou o molde bem guardado. A beleza e a inteligência são o supino irritante da pele mesquinha, tenhamos cuidado. Poucas cidades no mundo são tão obcecadas com o sexo como Berlim. Vêem-se vestidos decotados, saltos de dominatrix, decotes arrevesados e trapos com pedaços de metal incorporados. Vêem-se lantejoulas e missangas, tecidos transparentes e joalharia espampanante, saltos-agulha e botas de biqueira, vernizes e indiscrição a rodos. (…) Foi em Berlim que a semente da democracia e dos princípios libertadores dos americanos gerou a sua planta mais vigorosa, uma sociedade culta e tolerante, educada nos valores da universalidade e do cosmopolitismo, sabendo que a negação do Outro gera o gulag e o campo de concentração, o extermínio e a separação, o Muro e a vergonha histórica. Um dia, todas as cidades serão feitas desta maneira. Um dia, Lisboa sairá da sua soturnidade melancólica e descobrirá que existe uma vida para além do nosso preconceito.
Pluma Caprichosa, in Expresso.
2 Comments:
Crónicas sublimes!
São, aliás, o que justifica, actualmente, a compra do "Expresso".
afinal, miserável cidade. que coisa. emigre-se, talvez
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