quarta-feira, fevereiro 02, 2005

Olá João César

Venham daí essas tripas. Descansa, não falo para nenhum entidade joanina supra-humana. O teu gosto não me contraria nada. Fica só uma coisa rápida template abaixo a recordar que a verdadeira morte só decorre do esquecimento. Meu porco bom. Homem frágil e bravo. Sei que estás a apodrecer debaixo da terra. Há dois anos passei a sentir-me menos acompanhado; que estrago infeliz. O teu vai e vem havia sido transformado em muitos passos ganhos. Assaltei através de ti a riqueza de enfiar a mão na massa. Arroz devidamente malandrinho. Pintelhos à lupa. Freiras forretas. Meninas dadas. Mel pelos beiços. Vinde abelhinhas. Quanto ao menos não se impõem grandes conversas, oh visceral incorruptível. Bem conheçes o que a casa gasta. Os mantimentos são poucos e contigo já não se pode contar. Lembro com saudade a vez em que mandaste foder esta gente toda. Julgaram que era má educação. Confundem falta de maneiras com a sinceridade de um desejo profundamente enunciado. Outra liberdade que te relembra e me manda algumas vezes ao chão são as belezas leves. Saio-te com propriedade evidente um cona melado. Pá... não gostei do Silvestre. Parecia uma peça de teatro filmada. Mas há a descontar o ano afastado e as coca-colas com que já me encharquei. No encontro entre dois iguais o fracasso é sempre partilhado. Mas vou lá eu fazer ver isto a quem precisa. Digo-te outra. No Branca de Neve perdi as falas iniciais a magicar curioso na rapariga solitária da penúltima fila. Não havia claridade para entrever um traço que fosse do rosto dela. No fim era uma pseudo-intelectual entrapada. E eu a perder os primeiros minutos da tua adaptação do Robert Walser. Um gajo é trocado pelas merdas mais incríveis. Talvez sobre isso me remeta à impassibilidade. Da Comédia de Deus ficou-me uma outra introdução; bem mais elucidativa que viver anos e anos a transbordar energia. Espero continuar a existir variedade suficiente para me me ir deixando suspenso. É um tempo intermédio que molda os momentos seguintes. Estares morto ou vivo são certezas de vida enclausurada que desprezavas. Encontrar-te em todo o princípio de prazer, amar-te, artesanal, é de uma desordem menos fugaz. Meu porco bom. Persigo a hipótese da tua sobrevivência no coração e no acto de cada homem livre.

(João César Monteiro, realizador, morreu há dois anos).