quinta-feira, fevereiro 10, 2005

Excepção precisa-se

O maior acto de um ser a que por confiança desmedida se chama «humano» é a arte e a ciência. O resto é negócio e tempo livre. Nao tem mal nenhum. Mas convém acautelar o lugar no galho sob pena de andar ao engano e fazer barulho a mais, que é uma forma de poluição muito esquecida. A ciência está um pouco resguardada do aviltamento. Se em Portugal existisse espaço que fosse para errar a ciência eu do meu lado já julgaria um bom começo. Em Portugal falar em ciência é uma conversa de longe em longe, tão distanciada está das condições favoráveis, e do interesse inserido num quotidiano cultural onde a experiência se situa ao nível do dia anterior, repetível. Já a arte permite enganos vários. Está mais à mão. Não necessita de grandes condições logísticas. Precisa de um corpo e de um cérebro a funcionar de facto. Precisa de risco, imaginação, pensamento, emoção, disponibilidade, loucura, reflexo, criação, multiplicação, crítica, horizonte, e mais uns tantos classificativos um pouco chatos que é necessário saber dominar. É no contacto com a arte que o ser, a que por confiança desmedida se chama «humano», se recoloca no mundo e não raro incomoda-se. Diferencia-se se for capaz. É no contacto com a arte que se percebe como Portugal tem uma cultura atrasada, subdesenvolvida, e de como isso é muito penoso. Mesmo as novas gerações descendem da linhagem apoucada e normalizada do ditador de província mas com os tiques aburguesados e arrogantes que o centro comercial e o telemóvel concederam. Claro que são estreitos limites, a máscara é frágil. Não se procura nada dentro de si próprio. Mesmo as novas gerações procuram ser empurradas na maca enquanto vão dizendo um adeus tímido. Não percebem para onde vão. Têm comportamentos de busca do pai. Sociedade paternalista, onde os filhos sem saber o que é a independência e a liberdadade, esperam tudo, que algo lhes seja conferido de cada vez para que possam avançar. Não há procura de transformação que pode desembocar no talento. Não há uma prioridade por vaga que seja. «Eu tenho a minha vida» é a razão dada para fazer letra morta de todos os classificativos atrás descritos. Qual vida. Viver a seco. Gente sem livros, sem paisagem, sem verdade, sem vergonha. Gente desinteressante apaixona-se por gente desinteressante e casa-se na santa paz do desinteresse absoluto. Viver no século XXI ou na idade da pedra é um acaso existencial. Eu que julgava ser uma sorte fenomenal contar até 2005. Ninguém salta para a frente. Mas esperam no fundo dos seus medos que alguém um dia próximo lhes venda a bisnaga do talento e a espete na testa. Depois falam em felicidade. Para desenjoar.