sábado, novembro 13, 2004

Um amor de Swann

O amor pode ser um êxtase que chega num belo dia de sol, ou num bonito dia de chuva. Uma repentina concentração de todos os sentidos. O amor pode ser desde logo prazer ou resultar de uma propensão favorável. As voltas que Swann dá para saber como ama. Um personagem de paixões e muito conflito ponderado. Nos próximos meses este blogue há-de também ser sobre o génio de Proust:

- Juro-te - dizia-lhe ele, momentos antes de ela partir para o teatro - que, ao pedir-te para não saíres, se eu fosse egoísta, todos os meus desejos seriam de que recusasses, porque tenho mil e uma coisas para fazer esta noite e eu próprio caíria na armadilha e ficaria bastante aborrecido se inesperadamente me respondesses que não ias. Mas as minhas ocupações, os meus prazeres, não são tudo, tenho de pensar em ti. Pode vir o dia em que, vendo-me para sempre afastado de ti, terás o direito de me acusar de não te ter avisado nos minutos decisivos em que sentia que ia emitir um daqueles juízos severos a que o amor não resiste muito tempo. Estás a ver, Une Nuit de Cléopâtre (que título!) não significa nada neste caso. O que é preciso saber é se verdadeiramente és aquele ser que está no último nível do espírito, e mesmo do encanto, o ser desprezível que não é capaz de renunciar a um prazer. Então se tu és isso, como poderá alguém amar-te, porque nem sequer és uma pessoa, uma criatura definida, imperfeita, mas ao menos perféctivel? Ès uma água informe que corre consoante o declive que lhe oferecem, um peixe sem memória, e sem reflexão que, enquanto viver no seu aquário, esbarrará cem vezes por dia contra o vidro que continuará a julgar que é água. Estás a perceber que a tua resposta, não digo que terá como efeito eu deixar imediatamente de te amar, bem entendido, mas te tornará menos sedutora aos meus olhos quando eu compreender que não és uma pessoa, que estás abaixo de todas as coisas e que não sei colocar-te acima de nenhuma?
(...)
Mas, a maioria da vezes, quando fazia um esforço, se não para permanecer no tempo tão especial da sua vida de que estava saindo, pelo menos para ter dele uma visão clara enquanto ainda a podia ter, apercebia-se de que já não podia; gostava de contemplar como uma paisagem que ía desaparecer aquele amor que acabava de abandonar; mas é tão difícil ser duplo e disfrutar do espectáculo verídico de um sentimento que deixou de possuir-se, que, com a escuridão a invadir-lhe o cérebro, já não via mais nada, renunciava a olhar, retirava o lornhão, limpava-lhe as lentes; dizia de si para si que mais valia descansar um pouco, que daí a um bocado ainda estaria a tempo, e metia-se num canto, negligentemente, no torpor do viajante ensonado que puxa o chapéu para os olhos para dormir na carruagem que sente que o transporta cada vez mais depressa para longe do país onde viveu tanto tempo e que decidira não deixar fugir sem um último adeus.
(...)
E com aquela grosseria interminente que nele reaparecia quando já não estava infeliz, e que ao mesmo tempo baixava o nível da sua moralidade, exclamou de si para si: «E pensar que estraguei anos da minha vida, que desejei morrer, que dediquei o meu maior amor a uma mulher que não me agradava, que não era o meu tipo!»

[Em Busca Do Tempo Perdido Vol.I: Do Lado de Swann, Marcel Proust]


Não há nada em que mais acredite do que em verdades momentâneas.
Esquecê-las um pouco. São uma desgraça.
Aprender a deixar-me estar.
Preciso de espaço vazio.