Outras coisas.
Um dia desta semana estava no meio do rossio quando me cai na cara uma gota de chuva. Por estes dias tem estado um sol luminoso e a temperatura apetece o mundo. Mas eis que surge um patético esboço de trovoada. Sem ser enxuta de todo mas incapaz de molhar. Perante a determinação aparente da cidade, uma qualquer indecisão do céu. O irrelevante pingo de chuva que se limpa com a ponta de um dedo, gesto irreflectido provocado mais pela cócega repentina do que por insondável necessidade, transportou-me para aguaceiros torrenciais. Uma perdida gotinha que me lembrou umas tantas trovoadas de verão, com chuva bastante para ressuscitar regatos e ribeiros. Em movimento a chuva encharca-nos até aos ossos, depois a temperatura de 30 e muitos graus seca o corpo num instante. São prazeres passados. Que se repetem quando calha. Pedalar em cima de uma bicicleta pelos altos e baixos da paisagem, com as vistas curtas da curva e contra curva, ou com a planície a perder de vista. O movimento é das coisas bonitas e a acção também. Pedalar contra o vento é um esforço glório de dificuldade acentuada, pedalar a favor do vento é uma comunhão com a natureza, pedalar 100 km debaixo de nuvens cinzentas a desfazerem-se em chuva torrencial com muitos relâmpagos a iluminar a estrada escura é uma sorte dos diabos. A estrada fica mais escorregadia, forma-se a ilusão que estamos em cima de uma passadeira rolante, a corrente salta para a desmultiplicaçao mais pesada e a pedaleira puxa nos 52 dentes. A velocidade nuns 50km/h mantém-se constante se não existirem umas descidas no fio da navalha ou umas subidas a estragar o gozo. Como se vê a bicicleta era de estrada, leve e rápida. A Beira Baixa é pródiga em trovoadas de verão. «Já foi mais, já foi mais», dizem os antigos. Isto parece que anda tudo muito mudado, principalmente o clima. Cada bocado de chão que se pisa necessita estratégias distintas. O alcatrão é muito cómodo, mas quando a paisagem é menos humanizada e mais, invente-se, naturalizada, o calçado tem que ser forçosamente diferente. Uns pneus mais grossos e resistentes impõem-se. Percorrer os trilhos do Portugal profundo debaixo da agressividade do céu constitui uma outra forma de liberdade, a pele misturada com lama é uma junção óbvia, nós é que pensamos que não. Os tais ribeiros devolvem-nos uma certa cara de gente civilizada, por pouco tempo que a próxima poça de terra não demora. Os caminhos da vida são muito tortuosos. Mas as ovelhas safam-se como podem. Quando pressentem sinais de chuva aninham-se todas bem juntinhas e ficam muito quietas debaixo das árvores, procuram a protecção da folhagem. A ovelha sem arvoredo no horizonte pensa, isto se pensasse, «o que a minha lã não daria por um belo sobreiro», o sobreiro é muito apetecível para as ovelhas porque tem uma copa muito larga. De salientar que em trilhos não se fazem 100 km de enfiada, fazem-se menos, a natureza remete-nos para uma certa insignificância, talvez por isso encontremos uma necessidade tão urgente em destruí-la. Uma banheira cheia de espuma e água a borbulhar é o remate pacífico. Saímos do banho e sentimo-nos translúcidos. A monótona higiene diária não tem absolutamente nada a ver com paz. A necessidade urgente de tomar um banho: se possível com o corpo todo escavacado, se possível depois da alma renovada, se possível longe, se possível sozinhos, se possível com chuva e calor, se possível com ovelhas por perto, se possível. Como se percebe o ginásio não vale. De volta ao rossio. E eu que queria falar apenas de trovoadas de Verão, andar à chuva.
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