domingo, maio 16, 2004

O que é que resta?

As pessoas que respondem ás fotografias chocantes da tortura americana aos prisioneiros iraquianos com argumentos como: "se o Saddam ainda lá estivesse era pior", ou "isto é só propaganda anti-americana", metem-me nojo.
A acreditar nessa gente os americanos afinal não eram os libertadores, eram o menor de dois males. Isso não pode ser um argumento, como já tantas vezes disse. Se assim fosse os americanos, que são democratas, tornar-se-iam pouco melhores do que o ditador iraquiano. Isso é inadmissível. Os americanos só possuem a legitimidade de primus inter partes dos países democraticos enquanto respeitarem os direitos humanos e a legalidade internacional. Então e as Convenções de Genebra? A Carta das Nações Unidas? A Declaração Universal do Direitos do Homem?
A acreditar nessa gente, as fotografias teriam sido montagens ambiciosas de elementos do Bloco de Esquerda ou congéneres internacionais que teriam apanhado soldados americanos inocentes em inocentes interrogatórios.
Isso não foi assim. Cito Jon Stewart insuspeito americano (se ele é do Bloco, francamente não sei): "As prisões iraquianas não fecharam, apenas mudaram de gerência".
Para essa gente relembro o passado. O primeiro argumento: a guerra é legítima defesa preventiva face às armas de destruição massiça que Saddam tem e que indubitavelmente utilizará nos EUA. 2º momento: mesmo que não as tiver, podia vir a ter (genial, se se aplicasse às pessoas eu podia dar um tiro a uma pessoa que se aproximava porque esta podia um dia no futuro vir a agredir-me!). 3º momento: mesmo se tudo isso estiver errado, os americanos vêm instituir o respeito pelos direitos humanos e a democracia (então e a Líbia, a Síria, a China, a Coreia do Norte, o Irão, a Birmânia, grande parte dos países africanos? Tudo democracias? Quem nos dera!). Hoje, o que é que sobra? Não, a sério, para aqueles que me criticavam por eu achar que eles só lá iam pelo petróleo, respondam-me: o que é que resta?
Não me digam que tudo aquilo era legítimo para obter informação qualificada ("intelligence"), o que é que todos aqueles iraquianos sabiam? E se todos eles sabiam, como é que os americanos não sabiam? A CIA é assim tão má?
Para aqueles que me diriam que é um incidente isolado respondo: não, foi sob ordens do Secretário de Estado da Defesa (o mesmo homem que face às imagens arrepiantes do saque do Museu de Bagdad fazia piadas sobre estarem a roubar vasos, e que perguntava quantos vasos é que lá estariam). O pior é que parece que isto são procedimentos regulares de interrogatório em Guantanamo (outro buraco negro do direito internacional, culpa formada para quê?) e no Afeganistão.
Não, meus amigos, desta ninguém se safa. Nem as mulheres com aquele discurso de se só elas mandassem isto era tudo diferente... Sim, viu-se, era um bocado mais sado-maso, pelos vistos. Cheguei a ouvir um americano a dizer que aquilo era uma maneira saudável e natural de os jovens soldados americanos, sujeitos ao stress da guerra "blow some steam off by having a good time". Como é que isto é possível? O que é que resta?
Não se podem ir alterando as leis do Estado de Direito à medida do conveniente. É isso que nos distingue das ditaduras. Se o respeito pelo "due process of law" e pela Convenção de Genebra é destruido ou dobrado à medida do que vai dando jeito, eu não sei se quero viver no mundo que vai ser edificado sobre as suas ruínas.
Resta à America a humildade de, por uma vez na sua história, pedir desculpa.
Não, vocês não são "the greatest nation on earth".