sexta-feira, março 26, 2004

A laranjeira.

Por estes dias no topo da agenda, o cheiro da flor de laranjeira. Os sentidos meio adormecidos, com a vitalidade sugada pela movimentação contínua num meio hostil, despertaram, confusos, com um cheiro de paz. Uma laranjeira perdida no meio da calçada, exalava, inutilmente, um odor frutífero. Coisa rara nas ruas que correm. Houve em tempos na cidade um estúpido semeador de laranjeiras, inconsciente e sem coração, que resolveu plantar e abandonar. Iniciativa bonita de se levar a cabo, essa de plantar e abandonar. Para que outros colham e desta forma aproveitem a generosidade distraída. Mas uma laranjeira despropositada em que urbanitas perversos mijam por acharem bom tronco e boa rega, faz-me infeliz e atento a todos quantos, sobretudo loucos, plantam em tão inóspitos lugares. E agora eu de sentidos despertos busco em todos os recantos que o sol ilumina qualquer coisa mais substancial que carros, edifícios ou homens. Talvez mulheres. Porque a laranjeira irónica (resta-lhe a ironia) a desassossegar os viandantes, mostra-se exuberante. Se fosse poeta diria «quem me dera ser laranja e por um raminho ficar seguro aos ramos protectores da laranjeira». Mas de pronto viria um desocupado e asseguraria que «os ramos são uma metáfora, na realidade ele fala no útero materno». Mentiras. E com a burocracia das interpretações o essencial cheiro da flor de laranjeira rapidamente seria relegado para segundo plano. Escapa-lhe que bem sei o destino de uma laranja: cair esmagada no chão de podre. Não o deixo. Apenas falo no odor que me desatina os dias, quando o sinto e quando o sonho. Odor passageiro que o sentimos de raspão, a caminho de algum compromisso mais elevado que ficar simplesmente por ali na sedução da ramaria e na revitalização dos sentidos. Bastaria uma única laranjeira para tal? Depende do diagnóstico, alguns haverá que nem um pomar inteiro.

A laranjeira desprezada, sofre com a perspectiva de uma longa vida melancólica. Talvez um dia seja capaz de pegar num machado e lhe abreviar o sofrimento.
Qual Deus indevido em alheia vida.