segunda-feira, fevereiro 23, 2004

O Abel.

O meu bisavô e' vivo e tem saúde. São 92 anos que ele carrega nas mãos e sobretudo no olhar. Mas não se espere ouvir historias aventurosas. O meu bisavô não e' romântico, nunca me transmitiu a sua velha sabedoria sentado 'a lareira, apenas no seu olhar baixo preso ao lume se adivinhavam inquietações e pensamentos bem guardados. Quem sabe pensamentos tão delicados quanto os jardins que ele cuidava. As flores eram a sua matéria-prima. Os jardins a obra de arte. Foi jardineiro. Este homem forjado no fogo do inferno e moldado pelos elementos, só percebe a linguagem da terra e do céu. E olha o outro com a desconfiança natural de quem muito viu corromper. Foi sapateiro, descobriu Lisboa e foi jardineiro dos senhores do Estoril, voltou 'a terra de partida e continuou jardineiro, desta vez do senhor local. Mas a terra, sempre a terra a enrijecer-lhe a pele rude e queimada pelo sol. Porque o meu bisavô tem a pele calejada das agruras que a busca nas raizes e nas entranhas provocam e o sangue-frio arrefecido nos desencontros com os homens. Toda a vida fez musica, tocava um improvável instrumento de sopro de que não me lembro o nome, tocava de ouvido porque não sabia ler pautas, aliás, não sabia ler, bastava-lhe mais uma vez a linguagem da terra com a qual discursava com mestria, o dialogo com os homens – sabia-o - apenas era alheamento, servia para os entendimentos fugazes ao balcão da taberna com muitas cervejas 'a mistura. O retorno a uma vida essencial nos dias presentes pouco interessa, e' inútil, e assim se pode encontrar o meu bisavô sentado ao sol muito direito e com as mãos caídas entre as coxas e com os olhos pregados no céu, talvez continuamente rogando aos elementos que a terra que ele conheceu regresse e o fortifique. Porque não renega aquilo que foi toda uma vida. Ainda vira costas 'a aldeia e com pedalada certa percorre os caminhos tortuosos que o levam de encontro com a sua alma, que a pairar entre parreiras e oliveiras rapidamente lhe sopra uma renovada inspiração de vida. E com a sua velha força gosta de estimar os torrões que um dia o hao-de acolher não permitindo que as ervas ruins tomem o espaço do solo fértil pronto a semear. Que colha o Abel, primeiro nome de filho de mulher, enquanto a terra o deixar.